"Lavoura Arcaica" – imagens do tempo

Tatiana Salem Levy

         "Lavoura Arcaica", o filme, é menos uma adaptação do que uma reação ao livro. Não se trata simplesmente de adaptar uma narrativa literária a uma linguagem cinematográfica. Apontar os acertos e as falhas do diretor quanto à fidelidade à obra ‘original’ seria no mínimo uma redução simplista de todas as possibilidades de interpretação que o filme nos abre. Portanto, não pretendemos aqui fazer uma análise do filme em contraposição ao livro. É claro que há um diálogo constante entre os dois, mas um diálogo que ao invés de limitar os diferentes universos, expande-os.
         A inserção de "Lavoura Arcaica" no panorama contemporâneo do cinema nacional tem ao menos um aspecto de fundamental importância: o filme se coloca, à margem da tendência atual de se fazer comédias românticas baseadas em fórmulas internacionais ou comédias da vida privada trazidas diretamente de nossa televisão, como um filme de resistência. Na chamada ‘civilização da imagem’, é preciso resistir ao cliché, à imagem carregada de interioridade e de verdades preestabelecidas. Estamos rodeados de imagens a todo instante, mas nunca a imagem esteve tão longe de cumprir o seu papel: provocar sensações e levar o espectador a refletir. As imagens nos chegam como verdades já prontas, como algo a ser recebido e assimilado. A civilização da imagem é na verdade a civilização dos clichés, na qual tudo parece levar justamente ao encobrimento das imagens. O cliché faz desaparecer o que há de legível, e até mesmo de visível, na imagem, uma vez que trabalha com o óbvio, com o que já está dado e visto, com a repetição do mesmo. No entanto, é claro que, se por um lado os clichés estão sempre a apagar as verdadeiras imagens, por outro, as imagens estão sempre tentando escapar ao mundo dos clichés. Uma vertente do cinema atual – aquela que consegue se distanciar dos modelos hollywoodianos de cinema-ação – tem revelado grandes resultados na tentativa de sair do cliché, de arrancar deles a potência da imagem. "Lavoura Arcaica" é um exemplo de cinema que investe na criação de algo novo. E nesse sentido ele é um verdadeiro projeto, em que todos, atores, produtores, diretor e equipe técnica, se dispuseram a encontrar uma maneira de fazer da imagem um estímulo ao pensamento. E viram nisso um gesto de resistência.
         O que pretendemos, no presente trabalho, é demonstrar como se dá, no filme, o rompimento com o mundo dos clichés. De que maneira "Lavoura Arcaica" consegue trazer à tona um mundo de sensações que estabelece uma verdadeira relação entre o espectador e o filme? Como a imagem, encontrando seu ser, pode então ser lida e, enfim, vista, em toda a sua visibilidade e invisibilidade?
         Em livro intitulado A Imagem-Tempo, o filósofo Gilles Deleuze (1990: 31) afirma que o cliché é uma imagem sensório-motora da coisa, ou seja, uma imagem fundada nos princípios de ação e reação, e que

nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas. Portanto, comumente, percebemos apenas clichés.

        Romper com os clichés seria, portanto, romper com nossos esquemas sensório-motores. É quando o cinema deixa de se fundar num sistema de ação e reação que surge um outro tipo de imagem: "uma imagem ótico-sonora pura, a imagem inteira e sem metáfora, que faz surgir a coisa em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza (...)" (Deleuze, 1990: 31).
        Assim são as imagens de "Lavoura Arcaica". No filme, as situações sensório-motoras são evitadas em prol de situações puramente óticas. O enfraquecimento do que Deleuze chama de imagem-ação acarreta o surgimento de uma imagem que se nos apresenta em toda sua nudez e brutalidade. Talvez, por isso, o grande público possa se sentir incomodado com os sermões do pai, com a cena inicial da masturbação de André, com o diálogo entre os irmãos na pensão e com tantas outras cenas que revelam a coisa em si, a imagem desprovida de clichés. Aquele que for ao cinema em busca de diversão provavelmente não suportará a crueza das imagens de "Lavoura Arcaica". O filme não é para entreter os que se sentam na poltrona com um saco de pipoca à espera dos mesmos finais felizes e das mesmas ‘grandes emoções’. Como dissemos, as situações sensório-motoras são quebradas, fazendo aparecer situações de vidência, em que o espectador se confronta diretamente com imagens ótico-sonoras puras . "Lavoura Arcaica" é um cinema de vidente, para aqueles que têm paciência – a sábia paciência do pai – de realmente ‘ver’ uma imagem.
         Uma vez diante de verdadeiras imagens, o espectador pode entrar no mundo de sensações que se desvela a ele. O filme narra a história de André, o filho arredio que foge de casa, rebelando-se contra as leis paternas. Pedro, seu irmão mais velho, vai buscá-lo na pensão onde estava. Num momento de delírio, André conta ao irmão o motivo de sua fuga: a paixão que nutria por sua irmã Ana. Atendendo ao apelo da mãe, decide voltar para casa, onde todos o aguardam na expectativa de que a união da família seja refeita. Mas o retorno de André deixa em maior evidência a tensão entre o antigo – manifesto nos sermões do pai – e o novo – expresso pela figura do filho desgarrado. Assim, o que era esperado como motivo de alegria acaba se transformando numa tragédia sem medida.
        Resumidamente, é esta a história de "Lavoura Arcaica". No entanto, o que mais nos interessa aqui não é o conteúdo do filme, e sim as sensações que ele provoca. Os temas levantados pela narrativa – o amor, o incesto e as relações familiares – ganham intensidade na medida em que as imagens nos revelam um verdadeiro mundo de sensações: elas têm cheiro, forma, cor e som. As imagens tocam o espectador, assim como ele as toca. O pão caseiro sobre a mesa, a chuva no mato, os pés de André se contorcendo na terra, o louva-deus caminhando sobre os dedos de uma pessoa, o excesso de afeto da mãe pelo filho ao acordá-lo de manhã, toda a vida da família nos chega transbordando em sensações. Mergulhamos com André no cesto de roupas sujas e sentimos, junto com ele, o cheiro de cada uma, a intimidade de cada membro da casa. As imagens são carregadas de sensualidade, no sentido em que realmente nos tocam, nos fazem senti-las. Levando ao extremo a função ótica da imagem, ao romper com os esquemas sensório-motores, o filme alcança também uma função ‘háptica’, que designa um tocar característico do olhar. O cuidado da direção de arte e do figurino, assim como da fotografia, em revelar uma realidade crua permite um contato extremamente sensual entre o espectador e a imagem.
        Uma vez longe dos clichés, que nos impedem de ver, "Lavoura Arcaica" constitui, como dissemos, um cinema de vidente. Neste, abre-se um mundo em que cada imagem, ou cada seqüência, vale por si mesma. A montagem do filme não é uma montagem contínua, em que cada imagem espera a próxima, assim como é continuação de sua antecedente. No cinema-ação, as seqüências estão encadeadas de tal maneira que só funcionam em sua articulação. O filme constitui assim um todo linear, em que as partes não têm autonomia. Em "Lavoura Arcaica", ao contrário, as seqüências, apesar de articuladas, são descontínuas e têm força própria. Roland Barthes (1990:87), em artigo intitulado "Brecht, Diderot e Eisenstein", afirma que o cinema de Eisenstein é constituído por ‘instante plenos’, "cada um deles absolutamente significante". O mesmo ocorre com o filme de Luiz Fernando Carvalho. Nele, não se é obrigado a esperar a imagem seguinte para se compreender: cada imagem basta a si mesma. Assim, o filme passa de uma seqüência violenta, como a de André confessando a Pedro os motivos de sua fuga, a outra, terna e delicada, da mãe cuidando dos afazeres domésticos enquanto as crianças brincam. As duas seqüências não mantêm entre si uma relação de continuidade cronológica. Elas valem por si e exatamente por serem tão díspares – uma centrada na escuridão da pensão, e outra na claridade da casa – acabam provocando sensações opostas no espectador. A primeira parte do filme é toda composta por esses ‘instantes plenos’, por essas seqüências desencadeadas que bastam a si mesmas. Dessa maneira, surgem seqüências, como a de André se masturbando e imaginando Ana, que parecem não estar conectadas com o resto do filme. No entanto, é esta a intenção de um cinema vidente: constituir imagens óticas puras, que podem ser vistas distantes dos clichés e sentidas em sua verdade e plenitude.
        A montagem descontínua permite que o espectador estabeleça um contato de vidência com cada imagem, que ele apreenda sua situação puramente ótica. Uma vez desligado das situações sensório-motoras, o cinema põe em evidência as situações óticas puras, que liberam os sentidos em relação direta com o tempo e com o pensamento. É possível agora torná-los sensíveis, torná-los visíveis e sonoros. Não é à toa, portanto, que um dos pontos centrais de "Lavoura Arcaica" seja a relação com o tempo. No romance, isso já ficava em evidência, sobretudo na primeira parte, em que há três tempos distintos: a infância de André, o encontro com o irmão na pensão e o presente da narração, em que André já está distante dos fatos narrados. Entretanto, a passagem de um capítulo a outro estabelece, de alguma maneira, uma distinção entre os tempos. Já no filme, devido à montagem descontínua, essa distinção não acontece: passado, presente e futuro não seguem uma linearidade cronológica, em que um sucede o outro, mas estão todos imbricados na simultaneidade do Tempo.
         Gilles Deleuze, em livro já citado, enfatiza que a passagem do cinema clássico para o cinema moderno (o bom cinema moderno) é marcada pela passagem da imagem-movimento para a imagem-tempo. Enquanto a primeira subordina o tempo ao movimento, isto é, faz dele a contagem de um movimento a outro, a segunda – a imagem-tempo – promove o inverso: a subordinação do movimento ao tempo. Aqui, o tempo é encontrado em sua forma pura, extinguindo a distinção linear entre presente, passado e futuro. A montagem descontínua de "Lavoura Arcaica" permite justamente que os três tempos sejam simultâneos. Esse procedimento distingue-se do que entendemos por flash-back. Este faz com que o espectador tenha acesso a um tempo passado ao presente da narrativa, mas continua afirmando a sucessividade temporal. O que se passa no flash back já aconteceu e funciona apenas como explicação do presente. Já em Lavoura Arcaica, a infância de André, sua adolescência e sua maturidade são apresentadas simultaneamente. Não há aqui passado, presente e futuro sucessivos, segundo a passagem dos presentes que distinguimos. Como diz Santo Agostinho (Apud Deleuze, 1990: 124), "há um presente do futuro, um presente do presente e um presente do passado, todos eles implicados e enrolados no acontecimento, portanto, simultâneos, inexplicáveis". Assim, André adolescente assistindo à dança de Ana e André na pensão contando a Pedro que o motivo de sua fuga era a paixão pela irmã são fatos de um mesmo acontecimento, duas faces da mesma imagem. A indiscernibilidade do passado e do presente, tal como encontrada no filme em questão, corresponde a uma indiscernibilidade do virtual e do atual. Na imagem-tempo, a distinção entre presente e passado e atual e virtual não é suprimida, entretanto eles se tornam indiscerníveis. Nesse sentido, podemos afirmar que as imagens de "Lavoura Arcaica" são duplas por natureza, elas são compostas por duas faces: uma virtual e outra, atual.
         Segundo Deleuze (1990: 99), "o que é atual é sempre um presente. Mas, justamente, o presente muda ou passa. (...) É preciso, portanto, que a imagem seja presente e passada, ainda presente e já passada, a um só tempo, ao mesmo tempo." A imagem atual (o presente) coexiste com sua imagem virtual (o passado contemporâneo). Há uma lembrança do presente, "tão colada a este quanto um papel do ator". É preciso contudo distinguir a imagem virtual, que corresponde ao que Bergson chama de ‘lembrança pura’, das imagens mentais, lembranças, sonhos e devaneios. A lembrança do presente é ainda uma imagem virtual – que permanecerá como tal –, não tendo portanto se atualizado, ao contrário das demais, que são imagens virtuais já atualizadas no interior da consciência. Se nos detivermos na análise do filme, veremos que as cenas da infância e da adolescência de André não são simples rememorações do personagem: elas acontecem no exato momento em que são evocadas pelo relato de André a Pedro ou por sua narração. "Lavoura Arcaica" desvela assim uma imagem que nos permite ver um pouco de tempo em seu estado puro, um tempo não-cronológico, que não discerne passado, presente e futuro.
         São inúmeros os exemplos que encontramos no filme, mas há um, em especial, que gostaria de analisar aqui: as seqüências imbricadas do incesto consumado e de André menino brincando com uma pomba. São duas seqüências distintas, mas por estarem intercaladas formam uma só. Assim, o espectador entra a um só tempo na relação de Ana com André e na de André com a pomba. Dois tempos aparentemente sucessivos – a infância e a adolescência – , mas que se revelam dentro de um mesmo Tempo e ao mesmo tempo. A brincadeira de prender a pomba para depois soltá-la a fim de melhor sentir a liberdade, num jogo de amor entre o menino e a pomba, não aconteceu antes de André vivenciar sua paixão. O afeto pela pomba é coexistente ao afeto por Ana. Graças à montagem descontínua, é possível realizar no cinema seqüências que apresentam a simultaneidade do tempo. Não há aqui um passado que justifique o presente, mas um passado que se dá ao mesmo tempo em que o presente. Dessa maneira, a montagem, ao invés de produzir uma imagem indireta do tempo a partir do movimento, organiza as relações não-cronológicas da imagem-tempo direta. Não se trata, portanto, de uma lembrança da infância de André, mas da vivência real de um instante do passado.
         É interessante observar que não apenas infância e adolescência coexistem nesta seqüência do filme, mas também a voz em off do narrador – André já maduro – é pronunciada no mesmo instante em que as imagens nos são reveladas. Podemos ainda arriscar que também a conversa entre os irmãos se dá nesse mesmo momento, pois apesar de André estar narrando em off, é a Pedro, na pensão, que ele relata a paixão consumada pela irmã. Assim, todos os tempos do filme se encontram num só. Afinal, como afirma Fellini, nós "somos construídos como memória, somos a um só tempo a infância, a adolescência, a velhice e a maturidade"(Deleuze, 1990: 122). E memória aqui não consiste em se lembrar, mas em viver dentro da contigüidade do tempo.
         Vimos que a quebra dos sistemas sensório-motores possibilita a emergência de um cinema vidente. Neste, as situações óticas puras fazem nascer o que Deleuze chama de imagem-tempo. Uma vez desligada do mundo dos clichés, a imagem pode revelar o tempo em seu estado puro, não mais como representação indireta do movimento. Além disso, podemos afirmar também que a imagem nos coloca em relação direta com o pensamento, que ela nos estimula a pensar. São, portanto, duas as principais características do bom cinema moderno: revelar o tempo em sua forma direta e fazer o pensamento pensar. Ou seja: "produzir um choque no pensamento, comunicar vibrações ao córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral" (Deleuze, 1990: 189).
         O cinema é capaz assim de provocar reflexão, de se dirigir ao impensável no pensamento, como se fosse o invisível na visão. Todo pensamento contém em si um impensável, que é o seu ‘fora’, o exterior de sua dobra. Saindo da interioridade dos clichés, ele é arrebatado pela força de ‘dispersão do Fora’ ou pela ‘vertigem do espaçamento’ ( Maurice Blanchot), um vazio que constitui o questionamento radical da imagem. Enquanto o cinema clássico estava ligado a um Todo que se caracterizava pela associação de imagens decorrente da montagem contínua, o cinema moderno é a expressão de um Fora. Aqui, o filme deixa de ser imagens em cadeia na medida em que a montagem ganha um novo sentido. A montagem descontínua, responsável pela apresentação direta do tempo, é também capaz de forçar o pensamento a pensar. O que conta agora é o interstício entre as imagens, ou, como diz Deleuze, o método do entre, entre duas imagens. O fora ou o avesso das imagens substitui o todo, da mesma maneira que o interstício substitui a associação. O cinema nos faz então ver o indiscernível, a fronteira – o atual e o virtual, o presente e o passado, o real e o imaginário.
         A montagem de "Lavoura Arcaica" é toda nesse sentido: deixar vazios entre as imagens para provocar reflexão. O espectador é aqui peça-chave, uma vez que passa da posição passiva daquele que recebe as imagens e apenas reage no nível sensório-motor à posição de ser pensante. Rompido o sistema de ação e reação, somos então surpreendidos "por algo intolerável no mundo" e confrontados com "algo impensável no pensamento"(Deleuze, 1990: 205). O cinema nos coloca assim diante do mundo – do nosso mundo, e não de outro mundo. Ele restabelece o vínculo do homem com a realidade, devolvendo-nos a crença no mundo. "Cristãos ou ateus, em nossa universal esquizofrenia precisamos de razões para crer neste mundo", afirma Deleuze (1990: 207). E este talvez seja o principal gesto político do cinema moderno.
         Se "Lavoura Arcaica" promove uma relação direta com o pensamento é justamente para resistir, para alcançar um ato político. O filme empreende um movimento de extrair imagens dos clichés para conduzir o espectador ao seu mundo. Trazendo às telas imagens óticas puras – imagens do tempo –, "Lavoura Arcaica" nos coloca num estado de vidência. Somos agora capazes de ‘ver’ as imagens, sem o encobrimento imposto pelos clichés. ‘Vendo’, somos então lançados ao real, confrontados com sua beleza e horror. Sem nenhuma proteção, nós e o mundo.

Referências bibliográficas:

BARTHES, Roland. "Diderot, Brecht, Eisenstein". In: O Óbvio e o Obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

RODOWICK, D. N. Gilles Deleuze´s Time Machine. Duke University Press, 1997.